Por Luís Monteiro Carvalho, CEO da GestPub – Gestão Pública e Consultoria Autárquica, e da GestPME – Gestão e Consultoria Empresarial
A Administração Pública em Portugal está em crescimento, o que eleva as expectativas. Em junho de 2025, mais de 760 mil pessoas trabalhavam no setor, representando um aumento de 1,5% em relação a 2024 e o valor mais alto desde 2011. Em abril, a remuneração média mensal teve um aumento anual de 6,9%. Ou seja, há mais profissionais, e com salários melhores. No entanto, esses números, por si só, não garantem a retenção de talentos nem melhoram os serviços prestados. O que realmente promove comprometimento e desenvolvimento são a coerência entre funções e resultados, competências e critérios, além de liderança e processos.
No âmbito da Administração Pública, o desafio reside menos em organigramas e mais em alinhamento. Sem clareza sobre as entregas de cada função – e a forma de avaliação dessas entregas – continuaremos a recrutar por reflexo, a integrar por impulso e a avaliar de maneira rotineira. Sem critérios transparentes de competências, tanto técnicas quanto comportamentais, a justiça interna, a previsibilidade e o foco no que distingue o mediano do excelente se perdem. Além disso, sem processos que liberem tempo, a energia das equipes se esvai em tarefas transacionais, distantes do valor público que o cidadão reconhece. O resultado é um desperdício de talentos, frustração silenciosa e erosão da confiança, tanto interna quanto externa.
A boa notícia é que o contexto atual favorece uma mudança qualitativa. A simplificação administrativa e a transformação digital estão em franca ascensão: experiências digitais centradas no usuário, autoatendimento para operações de recursos humanos, automação de tarefas repetitivas e uso de dados para decisões sobre capacidade e mobilidade. A tecnologia não é um fim em si mesma: ela serve para devolver horas à missão, reduzir fricções e tornar o serviço mais comparável, previsível e escalável. Além disso, adota-se um modelo de operação mais ágil: objetivos claros, ciclos curtos, piloto–testar–escalar e aprendizado contínuo. Menos projetos de grande escala, mais impacto incremental visível.
Dentro deste quadro nacional, focar nas autarquias no ciclo de 2025 a 2029 é especialmente relevante. Um novo mandato implica realinhar departamentos, divisões e as competências delegadas; rever prioridades; e orientar equipes que desejam executar. A diferença entre “mais estrutura” e “mais serviço” se decide em escolhas simples, mas exigentes.
Primeiro, é essencial priorizar a missão sobre os organogramas. O município existe para oferecer valor público concreto: licenciar com previsibilidade, atender com clareza, realizar compras de forma íntegra e eficiente, executar obras com qualidade e apoiar pessoas e empresas com critérios. Quando a missão lidera a ação, a estrutura se organiza naturalmente.
Segundo, é necessário estabelecer uma linguagem comum de competências. Anúncios de emprego, entrevistas e processos de avaliação devem usar um vocabulário comum, em português claro, sobre os conhecimentos e comportamentos que realmente importam. Assim, quem se candidata sabe o que se espera; quem avalia conhece os critérios; e quem lidera sabe como desenvolver talentos.
Terceiro, é fundamental criar processos que devolvam tempo. Nas autarquias, os principais pontos de fricção são conhecidos: licenciamento urbanístico, atendimento ao munícipe, compras e contratações, interação entre serviços. Simplificar onde for possível, automatizar quando fizer sentido, medir prazos e previsibilidade e eliminar etapas sem valor são ações que podem gerar tempo para aquilo que realmente provoca impacto local.
Tudo isso demanda uma liderança próxima. Liderar em contextos autárquicos é gerenciar a saudável tensão entre a missão e a escassez de recursos: é preciso esclarecer prioridades, remover obstáculos e reconhecer o mérito, oferecendo feedback útil. Isso não é mero discurso; é uma disciplina diária. E requer a definição de poucas e boas métricas, que sejam visíveis e estáveis: prazos e previsibilidade de resposta, satisfação das equipes e dos munícipes, rotatividade de pessoal. Quando todos sabem o que é relevante, podemos melhorar o que realmente importa.
Nos primeiros 100 dias de mandato, quatro decisões são essenciais:
- Definir cinco funções-núcleo do município que impactam diretamente o cidadão e a economia;
- Publicar três métricas mensais de serviço, com linha de base e metas claras (prazo, previsibilidade, satisfação);
- Lançar duas iniciativas ou projetos-piloto de 90 dias – um interno e um voltado para o munícipe – para testar, medir, corrigir e escalar;
- Estabelecer uma nota de liderança: prioridades simples, reuniões curtas para remover bloqueios e reconhecimento público de quem contribui para isso.
Por que isso é importante agora? Porque, com o número de empregos públicos no mais alto em 13 anos e salários médios em ascensão, a fronteira decisiva deixou de ser quantitativa e passou a ser qualitativa. Se a ampliação do quadro funcional e o aumento das remunerações não forem acompanhados de clareza funcional, critérios consistentes, processos claros e uma liderança exigente, estaremos elevando custos sem um retorno proporcional em serviços. Por outro lado, se essa clareza estiver presente, poderemos transformar recursos em confiança: internamente, quando as equipes sentem justiça, progresso e propósito; externamente, quando os cidadãos percebem respostas claras e prazos confiáveis.
No fim, tudo se resume ao trabalho interno: em como alinhamos pessoas, processos e prioridades, desde o nível nacional até as autarquias locais. Não há receitas mágicas ou atalhos tecnológicos que possam substituir a cultura e o método. O que existem são escolhas consistentes, implementadas com seriedade. É a cultura organizacional, fundamentada em confiança, responsabilidade e inovação contínua, que transforma estruturas em resultados. Quando dirigentes e equipes assumem um compromisso coletivo com o aprendizado e a melhoria constante, o serviço público passa a ter previsibilidade, significado e um impacto real na vida das pessoas.
