Por Helena Braga Marques, sócia e advogada do departamento Laboral da PRA – Raposo Sá Miranda & Associados
A proposta de reforma da legislação laboral apresentada pelo Governo, denominada “Trabalho XXI”, surge num contexto em que o mercado de trabalho em Portugal enfrenta vários desafios significativos, como a elevada rotatividade, a precariedade e as dificuldades de integração de jovens e desempregados de longa duração. Esta iniciativa visa modernizar o mercado de trabalho, adaptando-o às novas realidades económicas e sociais, enquanto promove a flexibilidade, a protecção e a inclusão. Faz-nos refletir sobre a necessidade de equilibrar a flexibilidade das empresas com a proteção efectiva dos trabalhadores mais vulneráveis e sobre se estamos a avançar para uma evolução ou a regredir nas condições laborais em Portugal.
Um dos aspectos centrais da reforma é a redução do período experimental de 180 dias (alteração realizada em 2019) para 90 dias, especificamente para jovens à procura do primeiro emprego e desempregados de longa duração, alinhando, assim, o período experimental destes grupos ao da generalidade dos trabalhadores. Períodos de experiência prolongados podem contribuir para a manutenção da instabilidade e dificultar a construção de uma experiência sólida e segura por parte dos trabalhadores.
Além disso, outras medidas propostas para proteger estes grupos incluem a revogação da norma que permite a diminuição do período experimental com base em experiências anteriores noutras entidades empregadoras e a continuidade dos incentivos à contratação de jovens e desempregados de longa duração, como a dispensa parcial ou a isenção total do pagamento de contribuições para a segurança social por parte das entidades empregadoras.
Embora estas medidas pretendam garantir integração e maior proteção nos primeiros meses de emprego, pergunto-me: será esta flexibilidade uma verdadeira oportunidade de emprego ou uma via que se abre à precariedade?
Outro ponto relevante é a regulamentação do teletrabalho, que clarifica os direitos e deveres de empregadores e trabalhadores, abordando condições de equipamentos, responsabilidades e organização do trabalho à distância. Contudo, permite que as empresas recusem pedidos de teletrabalho sem necessidade de justificação, excepto em casos protegidos, como pais com filhos até oito anos, cuidadores informais ou vítimas de violência doméstica. Na prática, isso pode levar a uma redução da utilização desta modalidade, em vez de a expandir. Assim, embora se formalize o teletrabalho, a medida não assegura flexibilidade obrigatória para os trabalhadores, reforçando o poder das empresas na organização do trabalho. A falta de justificação para a recusa pode ser interpretada como um mecanismo de desregulação, prejudicando a conciliação entre vida profissional e pessoal.
<pEm relação à proteção coletiva, a proposta introduz mecanismos que facilitam a caducidade e a adaptação das convenções coletivas às novas realidades laborais.
A eliminação da arbitragem obrigatória na fase inicial e final da denúncia das convenções coletivas permitirá que a caducidade ocorra de forma mais rápida, possibilitando que retribuições, horários e benefícios sejam ajustados às novas condições de trabalho.
Isto significa que empresas e associações de empregadores poderão ajustar mais facilmente os acordos às necessidades do mercado atual. No entanto, do ponto de vista do trabalhador, existe um risco: as condições previamente acordadas podem tornar-se menos estáveis, criando uma sensação de insegurança relativamente aos direitos conquistados.
A inclusão também é uma prioridade: a reforma prevê quotas para grupos vulneráveis e permite a contratação a termo de trabalhadores reformados por invalidez, uma medida inédita no Código do Trabalho. Empresas com 75 ou mais funcionários têm a obrigação de integrar pessoas com deficiência ou de outros grupos vulneráveis. Acreditamos que a implementação eficaz destas quotas exige mais do que apenas números; implica uma transformação cultural nas organizações e na sociedade.
A fiscalização destas medidas será da responsabilidade da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), que terá a sua autonomia operacional ampliada. Isso permitirá que a ACT defina prioridades de fiscalização, atue rapidamente em casos de incumprimento e supervise novas modalidades de trabalho e programas de inclusão. O reforço das competências também abrange a promoção da igualdade de género, o combate à discriminação e a fiscalização das quotas de inclusão, consolidando a ACT como um verdadeiro guardião dos direitos dos trabalhadores.
Este fortalecimento deve ser acompanhado por recursos adequados e uma abordagem equilibrada, de forma a evitar que a fiscalização se torne um mecanismo de controlo excessivo que possa inibir a liberdade e a autonomia de empregadores e trabalhadores.
Em suma, a proposta “Trabalho XXI” apresenta avanços significativos na proteção de trabalhadores vulneráveis, mas também amplia consideravelmente a flexibilidade empresarial. A eficácia da reforma dependerá não apenas da sua aprovação legislativa, mas principalmente da capacidade de fiscalização da ACT e da implementação cuidadosa de todas as medidas, visando equilibrar a segurança laboral e o dinamismo económico.
Como advogada especializada na área laboral, vejo nesta reforma uma oportunidade de repensar o mercado de trabalho português. O desafio permanece encontrar o ponto de equilíbrio.
