Por Ana Sabino, Docente do Mestrado de Psicologia Social e das Organizações, Investigadora APPsyCI – Applied Psychology Research Center Capabilities & Inclusion. Ispa – Instituto Universitário.
São 9h em ponto. João entra na sala de reuniões com uma pasta de relatórios que sabe que ninguém vai ler. Cumpre o ritual: finge entusiasmo, faz perguntas vazias e, no final, sorri ao gestor que, há apenas uma semana, descartou publicamente as sugestões da equipa como “irrealistas”. Enquanto ouve o discurso motivacional sobre “valores da empresa” e “transparência”, João troca olhares com os colegas — todos sabem que aquelas palavras não significam nada. Saindo da reunião, após apertar a mão ao gestor e dizer: “Excelente discurso, obrigado pela confiança!”, murmura com ironia para o seu colega: “Mais uma sessão de teatro corporativo bem-sucedida.”
Será que esta e outras situações semelhantes se replicam em diferentes ambientes corporativos? Será que são só os “Joões” que adotam estes comportamentos ou, em alguma altura das nossas vidas, também já tivemos atitudes cínicas no trabalho? Se sim, porquê?
O cinismo organizacional é um fenómeno cuja prevalência tem vindo a aumentar e surge normalmente quando os colaboradores sentem alguma forma de incongruência por parte das organizações em que trabalham. Ou seja, quando percecionam que as suas entidades empregadoras não cumprem princípios fundamentais como integridade, justiça e sinceridade.
Quando os colaboradores acreditam que as decisões organizacionais se baseiam em interesses próprios e agendas ocultas, e que as pessoas não são fiáveis ou são inconsistentes nas suas ações, é menos provável que aceitem a estratégia e as decisões da organização, e mais provável que adotem uma postura cínica.
Esta reação é complexa e pode ser entendida em três dimensões:
Uma dimensão afetiva, caracterizada por sentimentos de frustração, desilusão e desconfiança;
Uma dimensão comportamental, que se reflete na adoção de atitudes depreciativas e críticas, como o uso de humor sarcástico ou o ridicularizar das iniciativas organizacionais — em público ou em privado;
E uma dimensão cognitiva, relacionada com as crenças dos colaboradores, ou seja, a sua interpretação do contexto organizacional em que se inserem.
Além da perceção do ambiente organizacional, outros fatores individuais também têm sido identificados como preditores relevantes deste fenómeno.
Pessoas com elevada afetividade positiva (por exemplo, entusiastas ou ativas) tendem a focar-se em aspetos positivos no seu ambiente de trabalho e a envolver-se em interações construtivas, mantendo uma perspetiva mais otimista em relação à organização. Já indivíduos com afetividade negativa elevada (como tendência para raiva, tristeza ou frustração) tendem a experienciar e gerar mais eventos negativos, sendo por isso mais propensos à desconfiança e ao cinismo organizacional.
Pessoas com um traço de cinismo mais elevado, por sua vez, acreditam que os seres humanos são egoístas, desonestos e que se aproveitam dos outros sempre que possível, o que reforça a predisposição para atitudes cínicas no trabalho.
Por outro lado, fatores organizacionais também têm um peso significativo. Altos níveis de stress, aliados à perceção de falta de apoio por parte da chefia, da equipa ou da organização como um todo, bem como sentimentos de quebra do contrato psicológico (as expectativas não formalizadas, mas percebidas como promessas), potenciam o surgimento e consolidação destas atitudes.
Suponhamos que o João está a experienciar todas estas condições: é, por natureza, uma pessoa cínica, com tendência para “ver o copo meio vazio”, expressa mais frequentemente afetos negativos e trabalha numa organização que não cumpriu com as expectativas criadas no momento da sua integração. Sente ainda um fraco suporte por parte da sua chefia.
A literatura indica que é muito provável que, ao adotar estas atitudes cínicas, o João se sinta menos satisfeito, menos comprometido, revele um desempenho mais baixo e tenha maior intenção de abandonar a organização. Estudos realizados no Ispa – Instituto Universitário, com amostras de trabalhadores portugueses, sugerem ainda que o cinismo organizacional pode contribuir para o aumento de comportamentos desviantes e até de situações de assédio moral, que prejudicam tanto a organização como as pessoas que nela trabalham.
Por isso, caro(a) leitor(a): cuidado com o cinismo organizacional — ele esconde-se em comportamentos subtis, mas pode corroer a confiança, a motivação e o bem-estar no trabalho.